Raça Brasil – Como recebeu a notícia sobre a condenação do
jornalista Paulo Henrique Amorim, que teve que se retratar e pagar uma
indenização de R$ 30 mil. O que esse episódio representou para você?
Heraldo Pereira – Para ser exato, antes que o juiz civil julgasse a
ação indenizatória, por danos moral e à imagem, o réu aceitou tudo
aquilo que eu exigia como forma de reparação pela grande injúria que
sofri: pagamento de R$ 30 mil reais para uma instituição de caridade,
retratação cabal feita no próprio blog dele, que vai permanecer em
arquivo por mais de dois anos, e a publicação da mesma retratação, cujos
termos falam por si só, nos jornais Folha de S. Paulo e Correio
Braziliense. Tudo pago por ele.
Raça Brasil – Você ficou satisfeito com a condenação?
Heraldo Pereira – O que eu buscava com uma condenação, consegui.
Ele teve que se retratar. É uma sentença definitiva. Claro, houve
sobressaltos. Apesar de assinar o acordo em que nega tudo o que afirmara
por longos três anos, meu ofensor fez outros comentários junto à
retratação no blog em vez de publicá-la pura e simplesmente como mandou a
decisão judicial. Meu advogado, Dr. Paulo Roque Khouri, imediatamente,
deu ciência ao juiz Daniel Felipe Machado, da 5ª Vara Civil do TJDFT,
que mandou retirar os comentários. No Correio Braziliense, isso não
aconteceu.
E, na Folha de S. Paulo, a retratação só foi publicada com
atraso e na edição paulista. Tudo isso ainda voltou para que o juiz
examinasse se o acordo foi honrado. De todo modo, creio que a Justiça
que eu esperava na área cível foi feita em boa parte. E, agora, aguardo a
definição do processo criminal, movido pelo Núcleo de Enfrentamento à
Discriminação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.
Tenho para mim que na esfera criminal a ofensa será dupla e
qualificadamente punida por crimes de racismo e injúria racial.
Raça Brasil – O que o racismo do Paulo Henrique Amorim representou para você?
Heraldo Pereira – No mundo de hoje, ninguém pode ser ofendido, como
fui, pelo fato de ser negro. O agressor não faz uma análise
profissional, política ou comportamental da minha pessoa. Ele faz uma
leitura intolerante a partir da racialidade. Destaca sempre como fato a
ser distinguido a cor da minha pele e desmerece a minha pessoa num gesto
de crueldade.
Nós negros sabemos bem qual foi a intenção do réu ao
dizer que eu, com mais de 30 anos de carreira jornalística e um título
de mestre em direito constitucional, não tenho “nenhum atributo para
fazer tanto sucesso, além de ser negro e de origem humilde”. São
expressões racistas que foram seguidas de um jargão máximo da
intolerância: “é um negro de alma branca”. É algo abjeto, que não posso
admitir, sobretudo, partindo de quem deve fazer da comunicação um ofício
ético e democrático e não uma ferramenta da intolerância.
Fora as
outras agressões raciais que ele fez diretamente e admitiu em forma de
comentários em seu blog no papel de moderador. Sou negro, sempre me
empenhei em todas as lutas contra os preconceitos e as intolerâncias
desde garoto. Sou de uma família de operárias, empregadas domésticas,
pessoas residentes em conjunto habitacional de Cohab e que sempre
sofreram o racismo na carne. Não vou permitir que um indivíduo que faz
propaganda do que é ser negro em suas rodinhas de convertidos tardios ao
esquerdismo, todos criados em berço de ouro, venha me dizer o que é ser
negro.
Nas minhas veias corre, com muito orgulho, sangue de quem foi
escravo e ajudou a fazer deste o nosso país. Exigimos respeito com a
história de quem construiu o Brasil. Por isso, não poderia deixar essa
campanha imunda, com contornos de inveja, passar como se nada tivesse
acontecido. Não honraria o meu passado e nem a luta de negros e brancos
que combatem o racismo. O meu agressor chegou a dizer, em sua defesa
judicial, que se considera um expoente da luta pela igualdade racial,
num gesto de arrogância desmedida.
E recebeu uma firme reprimenda do
juiz criminal do TJDFT, Márcio Evangelista Ferreira da Silva, para quem,
só adere à Lula pela igualdade racial, os que veem diferença entre
raças, fato já rechaçado pela genética. Numa das peças de sua defesa, o
réu chegou a dizer que ao usar a expressão “negro de alma branca”, o fez
para me elogiar. Pode isso? Só eu e a minha família sabemos a dor que
sofri ao ler todo aquele lixo em formato de texto. É algo indescritível e
que, no fundo, jamais será reparado, eu bem sei. O próprio juiz Daniel
Felipe no julgamento da ação civil disse isso. Entretanto, eu sempre
acreditei na Justiça e continuo acreditando.
Raça Brasil – O que você acha das cotas e dos movimentos negros?
Heraldo Pereira – Sou francamente favorável às cotas, porém,
respeito os que pensam em outro sentido. O aumento da participação do
negro na esfera pública é um desafio que está colocado àqueles que
pensam num projeto de nação para o Brasil. Sempre defendi este ponto de
vista. Não sou propagandista de ocasião. Quem me convenceu sobre a
necessidade de uma ferramenta para aumentar a representação de negros
nos postos-chave da nossa sociedade foi o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso. No intervalo de uma das viagens com o ex-presidente,
quando eu cobria a rotina presidencial, falamos sobre o tema.
Ele, em
tom professoral, discorreu longamente sobre as políticas de inclusão que
deveriam ter sido implementadas desde o Primeiro Império. Agora o
Brasil mostrou amadurecimento para tal ação e fez das cotas uma
realidade, com aprovação da sociedade. Precisamos, daqui para a frente,
implementar práticas daí decorrentes. Penso sempre que é positiva uma
medida que pode levar mais educação aos negros, e educação é tudo. É
preciso, entretanto, fazer uma separação entre a defesa de cotas, que é
ampla hoje em dia, e a necessidade de se incentivar todo movimento que
tenha por objetivo acabar com o racismo.
Também neste aspecto devemos estar unidos, todos nós, cidadãos
brancos e negros. Sou contra radicalismos, coisa que, sejamos justos,
não vejo em certas organizações que se travestem de movimentos negros no
rótulo e que não poderiam agir livremente para propagar ainda mais
formas de intolerância revestidas em ódio.
O nosso desafio é instituir
os direitos humanos como pano de fundo para a construção de uma
cidadania adulta que, ao refutar todas as formas de racismo e de
intolerância, possam admitir práticas de inclusão participativas cada
vez mais significativas numa esfera pública com a qual todos nós
sonhamos. Gostaria, para encerrar este episódio de discriminação que me
envolveu, de lembrar figuras de expressão da intelectualidade brasileira
como Sueli Carneiro. Ela diz que “um negro pode ser corrupto, se
posicionar contra os interesses de sua gente.
O que podemos fazer,
diante disso, é lamentar e combatê-lo politicamente, jamais atribuir
essa característica à sua condição racial. Aí mora o racismo, ao tentar
encontrar a razão da “falha” na negritude da pessoa ou na suposta
ausência dessa negritude em uma regra como propõe a frase, “negro de
alma branca.” Ana Maria Gonçalves quando se referiu a este episódio
sintetizou: “Paulo Henrique Amorim usou a cor de Heraldo Pereira para
atacá-lo. É racismo e ponto. Tá na lei. Quem não concorda deve brigar
para mudar a lei, e não para que Paulo Henrique Amorim esteja acima
dela. Que o defendam porque o acham bom amigo, bom jornalista, bom ser
humano; mas que entendam que pessoas assim também podem ter atitudes
racistas.” Estou com as duas!
Postada:Gomes Silveira
Fonte:Eliomar de Lima
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