Sartre escreveu em sua famosa peça
“Entre Quatro Paredes”, de 1945, que “o inferno são os outros”.
Não
existe uma definição universalmente aceita sobre o conceito de inferno
na tradição teológica ocidental. Segundo o historiador Jean Delumeau, no
livro “Entrevistas Sobre o Fim dos Tempos”, o catolicismo tradicional,
apoiando-se em Santo Agostinho, apregoava a “existência de um lugar de
sofrimento eterno para aqueles que tiverem praticado um mal considerável
nessa vida e dele jamais se tenha arrependido”. Essa noção, um tanto
incongruente com a imagem de um Deus misericordioso, não prosperou fora
do imaginário popular, sendo substituída pela solução do Purgatório,
desenvolvida no século II, sobretudo, por Orígenas. Ninguém mais
estaria condenado para sempre, embora, excetuando-se os santos, todos
tivessem que passar por um período variável de purificação, com a
garantia da salvação ao final. Santo Irineu discordava. Para ele, “os
pecadores confirmados, obstinados, se apartaram de Deus, também se
apartaram da vida”. Portanto, após o julgamento final, os condenados
seriam simplesmente apagados da existência.
A polêmica continuou pelos séculos dos
séculos, com novos debatedores: Tomás de Aquino, Lutero, Joaquim de
Fiore. Na literatura, Dante e Milton criaram visões poderosas do
inferno. O trio de condenados de Sartre, os cenobitas sadomasoquistas de
Clive Barker e os pecadores amaldiçoados de Roberto Bolaños são
recriações contemporâneas perturbadoras.
Bolaños encheu sua criação de sinais que
devem ser decodificados para que se revele seu verdadeiro sentido de
auto moralizante. O primeiro e mais importante é o título.
Originalmente, o seriado chama-se “El Chavo Del Ocho”, ou traduzindo do
espanhol: “O Moleque do Oito”. Ninguém sabe o verdadeiro nome do
protagonista, que nunca foi pronunciado. Chamam-no apenas de “Moleque”.
O nome próprio Chaves é uma adaptação brasileira, uma corruptela da
palavra “chavo”. É certo que um “chavo”, ou “moleque”, é quem faz
molecagens; quem subverte a ordem do que seria moral e socialmente
aceito como correto. Em livre interpretação, o “moleque” é um pecador.
Portanto, o seriado trata de pecados. Não de pecados mortais, pois do
contrário dificilmente seus personagens gerariam simpatia, mas, com
certeza, de pecados capitais.
Essa vila do “8” nada mais é do que um
pedaço do Inferno, especialmente preparado para receber seus hospedes,
mortos e condenados no julgamento final. Uma variação cômica de “Entre
Quatros Paredes”, onde duas mulheres e um homem (além de um mordomo… mas
o comunista Sartre não considerou o representante da classe proletária
um personagem pleno) são obrigados a se suportarem mutuamente pela
eternidade, num ciclo infindável de acusações e violência. Não é difícil
imaginar a cena: Chiquinha chuta a canela de Quico e faz seu pai pensar
que o menino foi o agressor, enervado Seu Madruga belisca Quico, que
chama Dona Florinda, que acerta um tapa no vizinho gentalha, que
descarrega a raiva no Moleque, que atinge o Seu Barriga quando ele chega
para cobrar o aluguel. Enquanto isso, o professor Girafales, queimando
de desejo, bebe café, com um buquê de rosas no colo, sem desconfiar a
causa, motivo, razão ou circunstância de tanta repetição.
Os pecados que cometeram em vida
transparecem em suas características, medos e frustrações. Chaves, o
Moleque, sempre faminto, cometia o pecado da gula. Glutão inveterado,
sua preferência por sanduiche de presunto indica desprezo pelas leis de
Deus, que proibiu o consumo de porco, esse animal sujo e de pé fendido.
Inimigo de qualquer autoridade moral, apelidou seu professor de “Mestre
Linguiça”, outra referência a malfadada iguaria suína.
A ganância de Seu Barriga é óbvia. Quem
mais cobraria o aluguel mensal praticamente todos os dias? Os golpes que
o Moleque lhe aplica sempre que chega a vila faz parte de sua punição.
O pequeno marinheiro Quico, o menino
mais rico da vila, é movido pela inveja. Sempre que vê um de seus pobres
vizinhos se divertindo com um surrado brinquedo, cobiça aquela alegria
simplória e vai buscar um dos seus, sempre maior e melhor, mas que nunca
lhe dá satisfação. O brinquedo do outro, mesmo sendo obviamente
inferior, sempre lhe parece mais interessante. Um círculo vicioso de
inveja, jamais saciada.
Chiquinha é marcada pela personalidade
intolerante, raivosa. Imitando o Pateta, usava o automóvel como uma arma
potencializadora de sua ira. Morrendo em uma briga de trânsito, na
vila, tenta fazer o mesmo com o triciclo. Não foram poucas as vezes que
atropelou pés e brinquedos. Mas a musa que canta a ira do poderoso
Aquiles não se ocupa da ira insignificante de Francisquinha. Sendo a
menor e fisicamente mais fraca da vila, só lhe resta chorar, chorar e
chorar.
Dona Florinda e o Professor Girafales
foram libertinos do porte do Marquês de Sade e Messalina (ou os
próprios). Mestres na arte da luxúria, acabaram condenados a eternidade
de abstinência sexual. Frigida e impotente, a mente almeja, mas o corpo
não acompanha. Consomem infindáveis xícaras de café que, com
propriedades estimulantes, alimentam ainda mais o fogo que não podem
debelar. O professor Girafales fuma em sala de aula não porque “El Chavo
Del Ocho” foi gravado antes da praga politicamente correta, mas devido
ao fato dele ser portador do célebre cacoete pós-coito de acender um
cigarro, fazer um aro de fumaça no ar e perguntar “foi bom para você?”.
Incapaz de cumprir a primeira parte do ritual erótico, involuntariamente
reproduz a segunda. Não por acaso, a trilha sonoro de seus encontros é a
mesma de “… E o Vento Levou”. A frase final do filme é “amanhã será
outro dia”. Na vila, sempre haverá outro dia e outra xícara de café.
Dona Clotilde, a bruxa do 71, padecia de
extrema vaidade. O gênio de Bolaños teve a sutileza de convidar uma
ex-miss, a espanhola Angelines Fernández, para interpretar a personagem.
Novamente o signo de uma condenação eterna aparece: 71 nada mais é do
que 7+1=8. O animal de estimação de Dona Clotilde, significativamente
chamado de Satanás, chama atenção para outro elemento importante. A
presença de diversos demônios errantes na vila. Trata-se de uma besta
transmorfa. Em alguns episódios satanás é um gato, em outros um cão.
Diferente do paradoxo do coelho-pato de Jastrow, Wittgenstein e Thomas
Kuhn, que servia ao desenvolvimento da razão, o gato-cão é uma
representação do misticismo, o cão em “pessoa”.
Em 1589 o teólogo Peter Binsfeld, no
livro “Binsfeld’s Classification of Demons”, estabeleceu que cada um dos
sete pecados capitais possui um patrono infernal. Sintomaticamente,
Lúcifer, nome pelo qual muitos chamam satanás, gera a vaidade. Os outros
são Asmodeu que gera a luxúria, Belzebu a gula, Mammon a ganância,
Belphegor a preguiça, Azazel a ira e Leviatã a inveja. Não nos
enganemos: eles rondam a vila. Aparecem circunstancialmente, para
promover desordem, dor e tentação.
Se o gato-cão Lúcifer/Satanás ajuda a
difundir o boato de que Dona Clotilde é uma bruxa, me parece óbvio que a
bela menina Paty e sua tia Glória são Belzebu e Belphegor
metamorfoseados em súcubos, demônio sexuais femininos, prontos para
atiçar outros apetites no Moleque e tirar Seu Madruga de seu estado de
letargia. Por sua vez, o galã de novelas Hector Bonilla, que visitou a
vila, nada mais é do que Asmodeu na forma de um íncubo, demônio sexual
masculino, com a missão de tumultuar a relação do casal de libertinos
castrados. Nhonho é Mammon, instigando o pai avaro a gastar. Popis é
Azazel, esmerando-se em despertar a ira de Chiquinha com sua futilidade
enervante. Godinez é Leviatã atiçando a inveja de Quico, com suas
respostas tão certeiras quanto involuntárias ao Mestre Linguiça. Figuras
de pouca relevância como Dona Neves, Seu Furtado, os jogadores de ioiô,
os alunos anônimos na escola, os clientes do restaurante, o pessoal do
parque e do festival da boa vizinhança, além de outros coadjuvantes, são
entidades demoníacas menores, com a função de criar a ilusão de
normalidade.
O carteiro Jaiminho, em sua função de
portador de mensagens, é o único representante do lado de cá. Um médium
que tenta fazer contato com essa outra dimensão. Seu constante estado de
fadiga é resultado do esforço sobre-humano necessário para cruzar as
dimensões. Prova disso é a descrição que Jaiminho dá de sua terra natal,
Tangamandápio. A despeito de existir de fato, sendo localizada a
noroeste do Estado mexicano de Michoacán, trata-se de uma alegoria.
Segundo o carteiro, tudo em Tangamandápio é colossal. Seria maior do
que Nova York e teria uma população de muitos milhões de habitantes. O
que poderia ser tão grande? Obviamente, ela não se refere a uma única
localidade isolada, mas a todo o planeta; a terra dos vivos. As cartas
que transporta são psicografias e a bicicleta que nunca larga, apesar de
não saber andar, nada mais é do que um totem, ao estilo de “A Origem”,
necessário para que possa voltar para realidade.
Em “El Chavo Del Ocho”, Bolanõs, o Camus
asteca, criou sua própria versão do mito de Sísifo. O Moleque e
companhia estão condenados a empurrar inutilmente por uma ladeira
íngreme essa imensa pedra chamada cotidiano, que sempre rola de volta,
obrigando-os ao tormento do eterno retorno. A pedra de Quico é quadrada,
não rola, desliza. É cômico, apesar de trágico.
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Postada:Gomes Silveira
Edição:Ingrid Lima
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